Quando o Papa Francisco
mencionou na Jornada Mundial da
Juventude que, para algumas pessoas, a
palavra “solidariedade” era um palavrão, não o fez sem motivo ou propósito.
É que a obrigação de ser
solidário entra em choque direto com a teoria liberal, que está angariando adeptos no Brasil. Para os liberais, a ajuda
aos pobres e minorias sociais não seria uma obrigação estatal e nem individual,
mas sim, uma voluntariedade beneficente.
Vale dizer que o
individualismo (defendido pelos liberais) tem por base a meritocracia, ou seja, o que você mereceu
conquistar é seu e pronto, e ninguém pode obrigá-lo a dividir nada. Abruptamente e sem um raciocínio mais prudente, um adolescente de classe média poderia dizer que isso é lógico, mas, no fundo, não é!
É aqui que cabe uma pergunta: existe base moral para justificar a meritocracia atual?
É aqui que cabe uma pergunta: existe base moral para justificar a meritocracia atual?
O termo “meritocracia” sempre
teve significados diferentes ao longo da história da humanidade, tendo íntimas
relações com parâmetros que favoreçam a classe dominante de cada época.
Na pré-história, o merecimento na
apropriação de bens limitados era do fisicamente mais forte, o que deixava o
mais fraco à míngua e sem meios de comer de se cuidar.
Depois, o merecimento era uma
dádiva de Deus que legitimava as famílias reais a serem as donas dos corpos de
seus súditos.
Atualmente, o que dizer dos critérios de ascensão social? Quem tem mais chances: uma criança de pai rico ou uma
criança de pai pobre?
Assim, o problema fulcral do
individualismo está em saber se o mérito é justo ou injusto, e se os
beneficiários têm uma obrigação moral de solidariedade.
Sem uma boa reflexão, somos
levados a imaginar que os parâmetros estabelecidos de meritocracia na sociedade
atual são certos, prontos, atualizados e inquestionáveis. Vamos a exemplos
simples: em um jogo de futebol, é justo o time que jogou melhor perder? Em uma
corrida, é justo o corredor (que tem a perna menor) perder para o atleta (que
tem a perna maior) que se esforçou menos? Qual o critério mais justo em um
concurso para o cargo de juiz: experiência de vida jurídica ou cursinhos
preparatórios? As regras do jogo são justas?
Como você pode observar, todos
esses questionamentos geram polêmicas e dúvidas. E se há dúvidas, então, a
meritocracia é questionável.
Porém, o tema mais polêmico gira em
torno do seguinte: você não é responsável, ao menos em parte, pelo QI que você
tem e muito menos pela sua disposição física em trabalhar. Atualmente, poucos
param para questionar esses critérios de seleção e de apropriação de bens
limitados, em que ganha a posição quem é mais intelectualmente preparado e/ou
trabalha mais!
Peter Singer, famoso autor
australiano, diz que há algo de errado na distribuição das posições sociais de
acordo com o QI, pois se trata de critérios que são, em grande parte,
determinados pela origem genética, sendo uma “forma arbitrária de seleção e que
nada tem a ver com aquilo que as pessoas merecem” (Ética Prática. 2002, p. 58).
Ademais, soma-se ao QI e as
habilidades laborativas, circunstâncias familiares, psicológicas, econômicas e
outras que influem decisivamente na vida de cada um separadamente, o que também
abala seriamente o critério do merecimento justo em uma competição capitalista.
Portanto, o que eu quero dizer, é
que não existe um critério de merecimento ideal e justo, o que me força a
discordar do individualismo defendido pelos liberais.
Assim, essas pessoas que
conseguiram ter suas propriedades não podem dizer que mereceram tê-las, pois,
como se vê, tal critério de merecimento é feito mediante uma loteria biológica,
psicológica, circunstancial ou social, o que torna injusta a situação.
Por tudo isso, é que temos
obrigações para com os pobres e não temos legitimidade nenhuma para dizer que
temos liberdade de não ser solidário e deixá-los morrer de fome e de doenças.
Solidariedade é uma obrigação
moral de todos nós (especialmente os mais ricos) e é por isso que existe o
Estado para arrecadar tributos com o fim de fazer justiça social.
Nascer em família rica, nascer
sem problemas de intelecto e não ter problemas familiares que possam abalar sua
trajetória são circunstâncias que influenciam e não podem ser atribuídas como
merecimento justo.
Nesse mister, é bom esclarecer à
população que conceder oportunidade através do Estado é uma hipótese descartada
no discurso dos liberais, pois eles atribuem à iniciativa privada a
responsabilidade pela educação, saúde e outras atividades, o que exclui ainda
mais grande parcela da população no Brasil.
Ora, é muito confortável defender
o individualismo quando se teve, durante a vida, boas oportunidades sociais,
físicas e psíquicas para merecer os bens da economia. Falar que produz riqueza
ocupando injustamente espaços sociais e ainda reclamar que tem que repartir,
pode soar esquisito, não é? Isso também se deve ao fato ser-humano, ao longo de
sua vida, esquecer facilmente fatores ou pessoas que o ajudaram. Um comerciante
liberal, por exemplo, dificilmente irá relacionar em seus arquivos de memória
as pessoas e as circunstâncias comunitárias que o ajudaram a galgar uma boa
posição econômica; ele só lembrará das fases duras, nunca se questionando se a
loteria biológica e social o ajudou em seus “méritos”. Ele vai dizer que é
merecedor e pronto! Não tem discussão.
O capitalismo selvagem (este sim
não está submetido a regras sociais) está tão vivo em nossa cultura que nem
sequer paramos para pensar e questionar os padrões de meritocracia atuais que
ajudam a perpetuar a separação entre a casa grande e a senzala.
Aliás, é fácil notar que se tais
critérios de merecimento não mais atenderem à classe dominante serão
rapidamente substituídos por outro modelo liberal que garanta a continuidade da
exclusão social entre ricos e pobres.
E olha que eu não quero nem
adentrar nas consequências nefastas do neoliberalismo atual, em que famílias de
banqueiros e grandes empresas estão, sem tutela alguma, mantendo-se ricas e
prósperas no poder.
OTHONIEL PINHEIRO NETO
Doutorando em Direito pela Universidade Federal da Bahia
Mestre em Direito pela Universidade Federal de Alagoas
Especialista em Direito Processual, bem como em Direito Eleitoral
Defensor Público do Estado de Alagoas
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