terça-feira, 17 de setembro de 2013

A falsa meritocracia e a obrigação de solidariedade

Quando o Papa Francisco mencionou na Jornada Mundial da Juventude que, para algumas pessoas, a palavra “solidariedade” era um palavrão, não o fez sem motivo ou propósito.
É que a obrigação de ser solidário entra em choque direto com a teoria liberal, que está angariando adeptos no Brasil. Para os liberais, a ajuda aos pobres e minorias sociais não seria uma obrigação estatal e nem individual, mas sim, uma voluntariedade beneficente.
Vale dizer que o individualismo (defendido pelos liberais) tem por base a meritocracia, ou seja, o que você mereceu conquistar é seu e pronto, e ninguém pode obrigá-lo a dividir nada. Abruptamente e sem um raciocínio mais prudente, um adolescente de classe média poderia dizer que isso é lógico, mas, no fundo, não é!
É aqui que cabe uma pergunta: existe base moral para justificar a meritocracia atual?
O termo “meritocracia” sempre teve significados diferentes ao longo da história da humanidade, tendo íntimas relações com parâmetros que favoreçam a classe dominante de cada época.
Na pré-história, o merecimento na apropriação de bens limitados era do fisicamente mais forte, o que deixava o mais fraco à míngua e sem meios de comer de se cuidar.
Depois, o merecimento era uma dádiva de Deus que legitimava as famílias reais a serem as donas dos corpos de seus súditos.
Atualmente, o que dizer dos critérios de ascensão social? Quem tem mais chances: uma criança de pai rico ou uma criança de pai pobre?
Assim, o problema fulcral do individualismo está em saber se o mérito é justo ou injusto, e se os beneficiários têm uma obrigação moral de solidariedade.
Sem uma boa reflexão, somos levados a imaginar que os parâmetros estabelecidos de meritocracia na sociedade atual são certos, prontos, atualizados e inquestionáveis. Vamos a exemplos simples: em um jogo de futebol, é justo o time que jogou melhor perder? Em uma corrida, é justo o corredor (que tem a perna menor) perder para o atleta (que tem a perna maior) que se esforçou menos? Qual o critério mais justo em um concurso para o cargo de juiz: experiência de vida jurídica ou cursinhos preparatórios? As regras do jogo são justas?
Como você pode observar, todos esses questionamentos geram polêmicas e dúvidas. E se há dúvidas, então, a meritocracia é questionável.
Porém, o tema mais polêmico gira em torno do seguinte: você não é responsável, ao menos em parte, pelo QI que você tem e muito menos pela sua disposição física em trabalhar. Atualmente, poucos param para questionar esses critérios de seleção e de apropriação de bens limitados, em que ganha a posição quem é mais intelectualmente preparado e/ou trabalha mais!
Peter Singer, famoso autor australiano, diz que há algo de errado na distribuição das posições sociais de acordo com o QI, pois se trata de critérios que são, em grande parte, determinados pela origem genética, sendo uma “forma arbitrária de seleção e que nada tem a ver com aquilo que as pessoas merecem” (Ética Prática. 2002, p. 58).
Ademais, soma-se ao QI e as habilidades laborativas, circunstâncias familiares, psicológicas, econômicas e outras que influem decisivamente na vida de cada um separadamente, o que também abala seriamente o critério do merecimento justo em uma competição capitalista.
Portanto, o que eu quero dizer, é que não existe um critério de merecimento ideal e justo, o que me força a discordar do individualismo defendido pelos liberais.
Assim, essas pessoas que conseguiram ter suas propriedades não podem dizer que mereceram tê-las, pois, como se vê, tal critério de merecimento é feito mediante uma loteria biológica, psicológica, circunstancial ou social, o que torna injusta a situação.
Por tudo isso, é que temos obrigações para com os pobres e não temos legitimidade nenhuma para dizer que temos liberdade de não ser solidário e deixá-los morrer de fome e de doenças.
Solidariedade é uma obrigação moral de todos nós (especialmente os mais ricos) e é por isso que existe o Estado para arrecadar tributos com o fim de fazer justiça social.
Nascer em família rica, nascer sem problemas de intelecto e não ter problemas familiares que possam abalar sua trajetória são circunstâncias que influenciam e não podem ser atribuídas como merecimento justo.
Nesse mister, é bom esclarecer à população que conceder oportunidade através do Estado é uma hipótese descartada no discurso dos liberais, pois eles atribuem à iniciativa privada a responsabilidade pela educação, saúde e outras atividades, o que exclui ainda mais grande parcela da população no Brasil.
Ora, é muito confortável defender o individualismo quando se teve, durante a vida, boas oportunidades sociais, físicas e psíquicas para merecer os bens da economia. Falar que produz riqueza ocupando injustamente espaços sociais e ainda reclamar que tem que repartir, pode soar esquisito, não é? Isso também se deve ao fato ser-humano, ao longo de sua vida, esquecer facilmente fatores ou pessoas que o ajudaram. Um comerciante liberal, por exemplo, dificilmente irá relacionar em seus arquivos de memória as pessoas e as circunstâncias comunitárias que o ajudaram a galgar uma boa posição econômica; ele só lembrará das fases duras, nunca se questionando se a loteria biológica e social o ajudou em seus “méritos”. Ele vai dizer que é merecedor e pronto! Não tem discussão.
O capitalismo selvagem (este sim não está submetido a regras sociais) está tão vivo em nossa cultura que nem sequer paramos para pensar e questionar os padrões de meritocracia atuais que ajudam a perpetuar a separação entre a casa grande e a senzala.
Aliás, é fácil notar que se tais critérios de merecimento não mais atenderem à classe dominante serão rapidamente substituídos por outro modelo liberal que garanta a continuidade da exclusão social entre ricos e pobres.
E olha que eu não quero nem adentrar nas consequências nefastas do neoliberalismo atual, em que famílias de banqueiros e grandes empresas estão, sem tutela alguma, mantendo-se ricas e prósperas no poder.

OTHONIEL PINHEIRO NETO
Doutorando em Direito pela Universidade Federal da Bahia
Mestre em Direito pela Universidade Federal de Alagoas
Especialista em Direito Processual, bem como em Direito Eleitoral
Defensor Público do Estado de Alagoas

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